Jonas Furtado
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Textos
A salvação da velha
 
O motor parou novamente. Noite um tanto quanto límpida. Satiro não tinha sequer uma linha de graça no rosto; todas lhe eram caras, e só havia uma cara, séria. Serena como a noite? Quase singela.

O motor parou! O que deveria ser agora?

_Ar?
_Mururé.

Não estava de todo escura a noite, mas as árvores delineando o igarapé pareciam sombras contínuas acompanhando o bote. Essas sombras avançavam querendo os engolir? Engolir aquele casco podre cujo coração era doente. Doente que precisava levar a velha Cláudia que há dias vinha sofrendo de dores. Ela era a doente e a pequena embarcação sentia os males. O corpo da velha moído da prostração, dos emplastos, dos chás, agora ali na rede, mole e sobre o motor que fervia o ar, impregnando-o de óleo diesel e fumaça. Serzelina, aquela peste, filha da enferma, era a única a mover-se dentro da embarcaçãozinha. Por que houveram de me procurar, cismar logo comigo? Podiam pedir ao Zélio; ele tem uma canoa bem melhor, veloz.

Satiro era só impaciência por dentro e descontava aquele incômodo no motor. Culpa de Delma: “Vai, filho, a dona Cláudia está muito mal. Na cidade tem médico. Não lhe custa”. Mesmo que a família da enferma desse o combustível, custava muito a ele. Tinha avisado do estado da canoa. A velha não escaparia; chegaria morta lá. Antes essas sombras abrissem suas bocas e nos engolissem; perderia o casco velho, ficaria vivo, mas terminaria logo com a agonia dessa coitada. De quebra, morria Serzelina também. Não me acordariam essas tantas da noite para levar doente à cidade. Bem que tinha voadeira do posto, mas, porque pública, arrebentaram ela, trazendo mercadorias para o comércio das pragas, donas da chave.

A viagem demorava. A maré alta lavava os terrenos; os açaizais, limpos pelos terçados, pelos machados, mostravam seus olhos dentro da noite, abrindo-os quando o bote passava. As árvores cortadas, caídas, de bubuia, apodreceriam aos pés dos novos açaizeiros que viriam viçosos para o verão; os cachos encheriam os olhos dos donos e dos passantes. Por que aquele enfermeiro molenga de Santana não passava o machado na velha?

Satiro fazia rebujo com os pés para alcançar a hélice e remover as plantas que atravessaram o caminho. Só me faltava ter que mergulhar a essas.

Duas horas e quarenta de viagem e cinco imprevistas paradas: água no óleo, ar na bomba, cárter seco, rompimento da borracha do tanque d’água e agora lixo. Não era para ser ele! Olhava para a rede; a mulher definhava nela. Não sabia de seu mal. Ninguém sabia. Mas certamente morreria. Deixar sofrer era malvadeza. Era malvadeza, coitada. Até parece! Tinham que dar alívio. Talvez nem chegasse viva na cidade.

_O senhor tem lanterna?
_Não.

Havia sim uma lanterna, mas não estava com pilhas. Não adiantava dizer que tinha. Não diria mesmo?

_Candeeiro?
_Era só a poronga que caiu na água!

Estava se arriscando... Outro barco maior o acolheria numa curva. Não está tão escuro assim; desviariam. Mas se não desse tempo? E se a outra também estivesse no escuro?

O sopro do sete e meio, querendo funcionar, trazia a imagem do Arina tentando lhe vender um Tobatta. Motor antigo, dos bons. Por que não vendeu por mil e novecentos? Sendo de segunda. Não faria aquelas paradas se houvesse comprado o motor. Ou andasse prevenido! Mas quem contava que a velha Cláudia não morreria logo? E por que aquele canalha não trouxe ela, o Zélio; o barco dele é maior! E a voz de Arina ecoava dentro da cabeça de Satiro “é Tobatta, já sabe!”, fazendo chacota dele.

Com uns goles o sete e meio funciona.

_Já estamos a favor? - pergunta Serzelina, quase gritando.
_Já!
_Horas?- aponta ela para o braço.
_Duas!

Duas horas. Três de viagem agora; com cinco paradas! Droga desse sete e meio que não vale uma merda!

Satiro, no timão novamente, volta os olhos para o motor e para a rede da velha. O motor era que exprimia as dores dela. Verificava pela janelota a saída de água de refrigeração. As pequenas ondas do cortar do bote eram as veias dos igarapés que pulavam anunciando reprovação. Essa tensão o deixava de pressão alta. “Vai, filho”. Não negaria à sua Delma aquele pedido, nenhum desejo. Só a Delma mesmo!

_Tem água?

Satiro queria era mandá-la olhar para fora. Por acaso estamos voando, besta? Deveria dizer para ela parar de frescura. Água pra velha agora não faz diferença. Ela não pega no gole. Mas apontou um objeto:

_Ali no carote.

Satiro avistou as luzes da antena da companhia de telecomunicação acima da mata escura. Aquela paisagem o refletia. Estava diante de um imenso espelho. Seus olhos vermelhos acima da muralha de sua raiva. Vermelhos de sono e de gana.

_Na chegada, salta! Não espera ambulância!

Serzelina balançou a cabeça aceitando aquele conselho trespassado pela zoeira. Os berros de Satiro apenas desafinavam aquele desconcerto monótono dentro da noite.

Avistando a cidade, Satiro ficou imaginando o desembarque. Melhor na rampa. A água dormente do Marajó-açu cintilava com as luzes refletidas. Efeito de alguma varinha de condão? A velha receberia aquela magia ou eram prenúncios de velas desfechando aqueles ais?

Atracaram. Notaram a ambulância. Mas como? Compadre Aldo recebera a fonia e acordara o vereador. Mas não estava com defeito aquele aparelho?

A velha saindo da embarcaçãozinha era o vômito da sucuri que se enganou de presa. Podia ser as últimas golfadas daquele bote seu que também entregava os pontos.

Levaram a velha.

Pela manhã, o vereador trouxe o combustível. Comentou:

_O senhor, seu Satiro, ainda recebe uma medalha. Salvou a dona Cláudia. Mais um pouco e ela teria morrido. Palavra do médico.

“Mais um pouco”? Então por que esse desgraçado do motor não deu pane mais uma vez? Seria melhor para ela. “Recebe uma medalha”!

_Que bom!

E este um! Em vez de pensar em me dar uma bijuteria, nem para olhar para a embarcação que estava precisando de médico também. São todos uma corja! Quando precisam...

Satiro recebeu o óleo e desatracou. Com alguns goles, o motor fumegava a raiva de seu dono. Estava só, voltando para casa. Para sua Delma, com a tarefa cumprida. A lembrança do político prestativo lhe trazia algo de alívio agora. “Salvou dona Cláudia”. A frase servira de purgação daqueles seus pensamentos nada colaboradores. Pelo menos então me dessem o dia perdido! Mas a declaração do médico, do vereador nos ouvidos de Delma era o que o levaria à salvação.
Jonas Furtado
Enviado por Jonas Furtado em 03/06/2020
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