Um poeta de Ponta
Acabara de ler o regulamento. Pela primeira vez admitia-se inscrever poemas de forma fixa. Todo poeta de verdade deveria ser capaz de compor um soneto.
Mas sobre o que escreveria este ano?
Pegou um bloco de papel, uma caneta e foi ao trapiche municipal. A tarde estava mole e as ruas da cidade alimentavam uma lassidão nas casas.
Epa! O trapiche está sendo reconstruído. Ah, o velho trapiche que nas madrugadas desertas mais parecia uma cobra-grande ressonando na mansidão das águas escuras do Marajó-açu... Desviou o olhar. Avistou as mangueiras em frente à escola Aureliana; dirigiu-se para lá. Ao pé de uma imponente árvore, buscava a inspiração de que precisava. Nada, não saía nada.
Resolveu ir para a praça Antônio Malato. Ficou contemplando por algum momento as ruínas da antiga Prefeitura. Talvez devesse rascunhar um poema sobre a grandeza desse outrora Palácio Municipal. Outros já o fizeram em verso e prosa?! Já o têm como símbolo, hoje, de um tempo político devassador, hostil? Foi a tomada da Bastilha, a nossa Revolução Francesa!
Preferiu não. Melhor buscar outro assunto, outro fato.
Caminhou em direção ao cemitério. Um outro poeta já falou de seu mistério.
Buscava, então, algo de “altaneiro”? Queria a majestade de um município que reina “sob a imensidão do céu marajoara” (mencionando Sandoval Teixeira, músico que agora está sendo lembrado pela Associação Musical Antônio Malato)? E falando em AMAM, maravilha sentir os frutos dessa importantíssima instituição muito bem representada por seus músicos, em especial, o professor regente Marcelo Tavares; por meio de seu trabalho, ela ganha notoriedade no Pará e no Brasil. Essa entidade sim, admitiu mentalmente nosso poeta, tem merecimento de um poema em sua homenagem. Mas o quê? Nada, não é desta vez.
Continuou a vagar pela cidade. As ruas agora já apresentam algum movimento.
Suplicou às musas do Parnaso, em frente ao campo de futebol: fazer uma obra em que figurem Marcenaria, Acadêmicos, Pedregulho e outros clubes do município...; seria uma boa idéia? Pouco se interessou pelos jogos na região; para ele, só existiam Paysandu e Remo, e a Seleção Brasileira.
O passeio já estava alongando. Todavia, caminhar parecia ser a melhor saída para conseguir o mais belo poema e poder assim concorrer.
Lembrou-se de nosso açaí, de nosso camarão, e arriscou uma quadra:
Ah, cheiro da brasa e cheiro do tucupi
Estão assando camarão lá no quintal
Vejo os espetos da tala de jupati
-Movimentos típicos perto do jirau
Nada mau, achou. Mas faltava o açaí; faltava a gente cabocla. Tentou mais quatro versos:
Então me convida a dona Marianinha
Que sabe amassar o açaí no alguidar
E me aponta com a boca em bico a farinha
-Que bom uma comunidade visitar!
Gostou das rimas e do metro. Voltou a andar. Aproximara-se do Arapinã. Leu, releu as duas estrofes. Preciso melhorar. Vão me criticar por esses versos batidos e com pouca imaginação. Embolou o papel e enfiou no bolso.
Atravessou pela ponte. Das canoas atracadas ouviam-se as vassouradas que os tripulantes davam no fundo dos cascos das embarcações: era a faxina depois da viagem. Não quis parar. Pessoas o notavam agora. Prosseguiu nosso inconcusso poeta, rabiscando, andando.
No campo de aviação, imaginou o pouso suave de uma deusa que lhe traria a palavra exata, a colocação perfeita; o ritmo fluiria e quando percebesse, lá estaria o seu melhor poema, com sua mais sublime poesia.
Folhas de papel em branco acenavam ao vento. Tentou novamente:
Tem Praia Grande, Vila Nova e Mangabeira
Cajueiro, Cucuíra e Jagarajó
Vejo canoas e igarités lá na beira
E vejo o caboclo atolado no igapó
Ora, vejam só! Uma canção! Gonçalves Dias se importaria?
Não. Cento e vinte e oito anos merecem bem mais que só exaltação. Embolou essa folha também. Bolso!
Precisaria de um poema com crítica social, como aqueles que Castro Alves soube, com inflamação, declamar na denúncia da situação indigna dos negros. A poesia serve também para denunciar as mazelas da sociedade. E tentou:
Meninos da Matriz
da peteca e da bola
da mão indo ao nariz
a terra vai e cola
Meninos da manhã
que vendem unha e “chopp”
Esperem! Necessitava de versos com um mínimo de dez sílabas métricas; esses (não sei como conseguiu sem escandir) continham apenas seis. O tema era bom; ainda bem que o Conselho Tutelar já age nesse assunto socialmente vergonhoso, e há um programa do governo muito bom que tenta erradicar o trabalho infantil em nosso município. Esse poema seria só mais uma denúncia?!
A lembrança passeou agora pela ironia, às vezes sarcástica, de Matos Guerra e questionou, como ele fizera há séculos, sobre a honra, a verdade que poderia estar nos faltando. Lembrar-me-ão também como um “Boca do inferno”? Tentaria ser mais sutil, porém:
Ó cidadezinha filha da fruta
Da fruta que teus próprios filhos comem
Quais os homens que tomam a batuta
E nessa luta quantos te consomem?
Certamente Cazuza aprovaria, pensou. Mas nosso cauto poeta queria algo que encantasse a todos, que quem lesse pudesse dizer “Meu Deus, nunca vi lugar-comum tão poeticamente bem arquitetado!”; e pudesse suspirar singularmente satisfeito.
Sua mente teimou em rever os assuntos e as riquezas de nosso mundinho: dança folclórica, festa do boi-bumbá, enraizadas e muito bem alimentadas pelo professor Aristeu; encantamento de boto e de mãe-do-mato, sobre os quais os professores Edinelson, Cristina, Jorge e Ló já devem ter contado; a cerâmica insiste, resiste nas mãos do Anaías, do Carlos, do Assis e do Adelino; Enfim, as aflições humanas, a hipocrisia de alguns etc., tudo isso o nosso escritor maior - Dalcídio - magistralmente já se enveredou. Maravilhoso que hoje as artes em Ponta de Pedras ganham com o aumento do mecenato; cita-se, como exemplo, a dona Regina que está resgatando nosso teatro.
Nosso poeta voltou os olhos para o bloco novamente. Apelou para o trabalho árduo, forçando um poema a se desprender, sabe-se lá de onde; quis martelá-lo, limá-lo conforme fizeram alguns parnasianos, e o que conseguiu foi um escrito artificial e ornado.
Definitivamente, este ano não participaria do concurso de poesia da cidade. Desistiria?
Ah, o amor por sua terra era tamanho que não admitiria ter falhado na empreita de que tanto já havia se orgulhado.
O sol agora beijava as árvores lá na curva do estradão. Guardou o bloco e a caneta. O semblante mostrou uma expressão de alívio (pensava ele em uma outra oportunidade feliz?). E no retorno a sua casa, cantarolava algo de que não se dera conta que ele mesmo compusera... assim:
Amo-te tanto tanto, de um amar sem fim
E não julgo nunca terminar esse atrito
Que muito faz desse amor o infinito
Que o próprio amor que tenho e sinto por mim.
Seria uma força inconsciente que o impelia a não desistir? Ah, nosso poeta de Ponta estava destinado a isso, sim.