Minha infância
Foi um tempo quase desconhecido para mim, não fosse a curiosidade pelos mistérios do mundo a minha volta. Anos 70, começo dos 80. As lembranças me vêm agregadas à saudade; um desejo de reencontrar-me criança invade-me numa esperança de viver novamente aqueles dias fagueiros, de verdades e fantasias; preencher assim lacunas das quais minha memória deixou de se incumbir.
Em minha Ponta de Pedras vivi pontas de sonhos imensuráveis, abstrações que nem a realidade (quase sempre dura como pedra) pode dissipar por completo; e fatos reais misturam-se ao mágico desabrochar do menino na terra querida dos seus avós. Ponta de Pedras sou eu e as pessoas a ponto de encontrá-la sempre menina, sempre princesa em memória de vida... Vejo-me ainda menino, lá no Cucuira, ouvindo os velhos chamá-la de Itaguari! “Dé onde tu vem? Dé Itaguari!” Velhos tempos em que passávamos o dia lá no terreno do finado Binga debulhando açaí e ouvindo casos sem fim.
Lembro como lances fotográficos... Ao redor de mim, as coisas que faziam o coraçãozinho pular veemente por ter vontade de mais e mais viver. Viver as ruas, as casas, as gentes e suas histórias: viver-me!
Uma vez, assustado, corri para minha avó: “Meu coração está batendo!“, aí vinha aquele sorriso cheio de bonomia, clareando o rosto bonachão, querendo me fazer entender que era normal : “ É porque tu tá vivo...”. As justificativas tornavam-se incisivas para que eu parasse de indagar e cada vez mais eu indagava: “Por quê?”.
Minha ‘vozinha. Lembro-me dela fazendo pastilhas de coco para festinha do jardim de infância: “Professora Sônia vai adorar me ver vestido de quadrilha“, com aquele bigode de pó de carvão, “parecendo homenzinho já feito”, de chapéu de palha e calça enfeitados.
O jardim... Meu primeiro amor. Funcionava lá onde é hoje o seminário dos padres. Quanta felicidade: brinquedos, o uniforme quadriculado, as festas infantis e a professora! Uma vez, meu irmão transferiu-se para minha classe com sua autoridade inocente de criança (queria também a mesma professora?). Não teve jeito: ficou transferido! Minha irmã acostumou-se com a dela; íamos os três, juntos, e voltávamos alegres, com a roupa suja do “escorrega-bundas”.
Agora, com meus dezoito anos, lembro e comento do quanto minha cidadezinha mudou! As ruas perderam aquele segredo de levar-me aonde? E o boi do Mangote que fim levou? que não o vejo mais arrastando sua carroça na lida do dia-a-dia. As casas, algumas ainda possuem uns quês antigos do tempo querendo falar através delas; os comércios, as tabernas tinham jeito de começo de século, jeito e cheiro – ainda posso sentir a borracha, o pirarucu, a piranha salgada que vinha do Arari impregnando o ar lá na “Casa da Prosperidade” do senhor “Nemorino”: ele fazia questão de uma cuiona de mingau de milho branco lá da dona “Xixita”. Lembro-me vagamente de outras casas, com fachadas tipo colonial, com seus grandes nomes. Nomes que pareciam querer revelar um pouco de seus donos: “Casa da Beira” e o “Ponto Certo” – os práticos; “Casa Tavares” e “Farmácia Alencar”– os tradicionais; “Canto do Uirapuru” – os poéticos; “Casa Nossa Senhora da Conceição” – os devotos; “King Bar” e “Big Bar” – os modernos...
Por detrás da “Casa Tavares”, os foguetes chiavam e ganhavam espaço, explodindo anúncios de folguedo e arraial, avisando os ribeirinhos do Marajó-açu em dias festivos. Ficava de longe. O estouro me amedrontava; mas acompanhava o trajeto dos rabos vindo mergulhar na água qual ave pescadora atrás do marisco.
As canoas aportavam na rampa, cheias de utensílios artesanais: alguidar e potes, chapéu de palha e esteira, rosquinha e mel... “Compre um potinho de mel pra comer com farinha”; outras, com frutas: banana, pupunha, manga, bacuri, piquiá, cupuaçu e tantas mais que enchiam o ar de “marajoareidade” – como dizia meu tio na sua sabedoria interiorana. E ficava observando as canoas indo e vindo; no meu pensamento, eu as controlava; exceto a maior de todas: o “Raimundo Malato” – o “Barco da Linha”. Às vezes achava o rio pequeno demais para ele. Minha avó dizia que as coisas é que eram enormes para o meu olhar infantil.
Lá no quintal... Tivemos vários quintais; em cada um havia um segredo que eu teimava em não descobrir para não “quebrar o encanto”, apenas vivia-os. Lá, imaginava o mesmo movimento no porto e na feira: os mesmos barquinhos (agora de papel) deslizando na água que escorria da torneira do banheiro ou da enxurrada que molhava todo o terreiro: “tun-tun-tun-tun-tun”. E eles encostavam ligeiros no trapiche imaginário dos meus sonhos.
Moramos no lado do campo de futebol. O barulho das torcidas em dias de jogos enchia-me de um querer torcer também. Mas para quem? “Quem joga? Quem ganha?”; e me empurrava atrás dos maiores, mangueira acima. De lá se vivia a mesma euforia; no entanto, nunca consegui distinguir, daquele ângulo, quem era quem! “O que tu entende de time!?”. Sem falar do quanto eram perigosos aqueles galhos finos; mas o quê? Peraltices não vêem perigos...
De manhãzinha lá ia eu comprar manteiga e pão no seu Raimundo "Prego". Ele: "Quanto?", e mostrando dinheiro: "Isso". Boas-tardes podiam ser ouvidas do “Jereba” que passava na rua com saco de cocos nas costas – “Boa tarde!”- mas eu corria... Ah, quanta saudade!
Outra lembrança inesquecível: a “baiúca” do seu Joaquim. Quase todas as tardes (ou manhãs) lá estava eu com a palavra “Big-bol” na boca; e quando não tinha dinheiro, ele me entregava um. Talvez fosse por isso que sempre o achei com “cara de bom-velhinho”. Localizava-se onde hoje é a casa do Francisco Pereira; depois se mudou para frente do banco, debaixo de um jambeiro frondoso; agora é no “coretinho”, na mesma pracinha. Ainda vende bombons!
Alguns raros domingos, minha tia nos levava (meus irmãos e eu) para a praia – era uma alegria só! Íamos de ônibus. Não sei se era dos famosos “ônibus do Cícero”; deveria ser, pois de lá pra cá nunca ouvi falar em tais com outras designações. Era uma maravilha! O vento soprando no rosto pela estrada, esvoaçando os cabelos finos que me caiam na testa. Deslumbrava-me com as árvores e os campos passando e nem sabia que quem passava era a gente. Praia de Mangabeira: os coqueiros, os ventos, as ondas, a areia, alguns botes passando ao longe, “lá forão” – como disse um colega uma vez. E brincava na água com o sol a pino. Às vezes subíamos e andávamos atrás de mangaba até certo ponto da estrada...
Todas essas lembranças, as histórias e seus personagens reais, tudo motiva o encanto que por Ponta de Pedras sempre guardei; tudo me dá orgulho nessa terrinha, terrazinha que sempre amei.