Jonas Furtado
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Textos
Outra de boto
 
O conto “Uma história de boto” foi publicado no informativo que a escola da região mantinha. Os pasquins espalharam-se nas comunidades feito epidemia de cartas de parentes queridos.
Num dia, Manoel, filho de nove anos de Zédalo, chegou da escola e atirou os cadernos e livros sobre a mesa da cozinha. O jornalzinho voou para as mãos do pai. “Assim tu trata do material, Manduca?! Tenha zelo, menino!” O pai segurou a folha. “Saiu o de junho!” Leu. Leu tudo. Leu o conto do boto.
Josédalo, caboclo trabalhador, tinha mania de ler; não perdia os informativos da escola de seu filho. Lia de tudo: poesias, contos, mesmo que deles, às vezes, pouco entendesse. Aliás, costumava dizer que o gosto pela leitura era herança do pai, homem – também caboclo – apaixonado por mitologia. O nome “Josédalo” surgiu da discussão entre seus finados pais: a mãe queria homenagear o patriarca da Sagrada Família e o pai, o artista mitológico das asas de cera; num átimo de cordialidade concordaram em dar-lhe o híbrido nome “Josédalo”, ou Zédalo, como ficou conhecido no interior onde sempre morou.
Zédalo freqüentou escola até as séries iniciais; não havia mais escola para ele na região. Sair não podia. Era arrumar mulher e filhos e se atirar na luta do dia-a-dia: apanhar açaí, tirar lenha, fazer carvão, preparar roçado, caçar e pescar. Porém, fazia gosto que seus filhos, Manoel e Ofélia, estudassem e fossem além dele. Viridiana, sua esposa, que andava doente, mofina, também aplaudia aquele interesse pelo conhecimento que Zédalo sempre fez questão de alimentar.
Mas Zédalo mudou depois de ler o conto do boto. Aquele conto lhe abrira os olhos?
Quando conheceu sua esposa, via nela a vida que pulsava e nunca cansava porque queria sentir na alma a glória de estar no mundo depois de, quando criança, ter escapado de uma grave pneumonia. Há algum tempo ela começou a andar cabisbaixa, suspirando pelos cantos, mostrando uma tristeza repentina. Numa caçada, certa noite, Zédalo desabafara com seu amigo Rodugo. “Sua mulher pode estar mesmo doente, home! Leva ela no mestre Ziu.” O povo é que já comentava que o boto judiara dela. “O boto anda visitando tua casa, Zé!”, “Tua mulhé tá mundiada do bicho tinhoso!” Zédalo queria que fosse ao médico; ela adiava. Já tinha tomado garrafada de pajé. Até trabalho para o tal bicho das águas e da terra ir embora foi feito. Nada. Tinha que ir ao médico!
Um mês depois disso, Viridiana disse que estava grávida. Seria uma festa. O Zé sempre festejou o nascimento de um filho. Convidava o pessoal e armava a “mucura”; a maior peixada e camarão assado com açaí eram os tira-gostos da pinga de Abaeté – cachaça doce e apimentada! Mas dessa vez não. Da queda que sofrera de um açaizeiro, Zé conseguira manter a virilidade, mas não mais engravidaria sua esposa, conforme disse o médico. Só ele carregou o peso dessa notícia. Viridiana não ficou sabendo da esterilidade. Zédalo se conformou com os dois guris que já tinha.
Todavia, a mulher ficou de barriga. Milagre! Não, não fizera nenhum pedido aos santos nesse sentido. Mas Viridiana grávida! Enganara-se o doutor comigo; serei pai de novo. Mas, os tais deferentes rompidos. Sentia-se, nas palavras de seu próprio pensamento, “capado”. A companheira ignorava o fato. Ela poderia desejar ter mais filhos...
Viridiana mostrava traços arredios de maternidade lassa; a palidez desquarava o semblante outrora moreno e cheio de luz; a titinga deu sinal abaixo das orelhas e o brilho jovial da pele macia ofuscara-se – nuvens descontínuas amorteceram a estrela do dia.
"O boto, home, anda visitando tua casa!”. As palavras das gentes tiniam na vontade de Zé. Tiniam agora insinuantes, porque até então aquela história do boto era choça para ele.
Mais depois de ler o tal conto do boto no informativo, Zédalo mudou mesmo. Atinou para as freqüentes visitas que Rodugo ultimamente lhe fazia. Aparecia, principalmente, nas ausências do caboclo. Um pensamento de traição lhe assolava o corpo e a mente. Talvez não quisesse pensar assim. Infâmia. Traição. Rodugo e ele foram criados quase juntos. Não podia. Porém a raiva crescia no peito de Zédalo, o tórax estufava-se e comprimia-se, mandando rajadas de fúrias que fervilhavam nas veias e dirigiam-se frementes ao cérebro: “Rodugo era o boto filho da mãe!”.
O homem, agora transformado, mudou o semblante, deixou o informativo sobre a mesa e, dirigindo-se ao igarapé na frente da casa, pulou em suas águas frias. Conteve por hora sua febre. Parou, pensou, decidiu...
Disse à mulher que à noite iria lanternar; já tinha convidado Rodugo. “Vou caçar nem que seja um boto”, pensou, “Mato esse desgraçado”. Viridiana queixara-se como que temendo algo. Não teve jeito, à noite ele foi ao encontro do amigo.
No meio do matão, Zé se volta (parecia controlado) para Rodugo que defende, com a mão esquerda, os olhos da luz da lanterna de Zé, que o encandeou.
_Há quanto tempo tu me trai? Há quanto tempo, Dugo?
Não esperou resposta. O aparente controle explodiu com o estampido da arma que crivou Rodugo com chumbos.
_Ande, home, fale!
Rodugo, cambaleante, se atira nos braços do amigo, movendo a cabeça para os dois lados. E morre.
Zédalo nunca esqueceu o movimento da cabeça de Rodugo. “Queria dizer que não era verdade a acusação?”. Essa imagem o perseguia agora.
Os parentes do morto conformaram-se. “Fora acidente”. “Fatalidade”. “Acontece”.
Meses depois, Viridiana, sentindo dores, desatinada, jogou-se nas águas frias do rio Crairu. Deu à luz uma criatura horrenda. Contam meio cobra, meio peixe. “Feto mal-formado”, disse o enfermeiro do local. “Filho de boto”, comentou a veterana parteira.
E Zédalo? Ele não parou mais de lanternar. Até hoje convida seu amigo Rodugo; e nunca chega com caça alguma.
Jonas Furtado
Enviado por Jonas Furtado em 02/06/2020
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