Jonas Furtado
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Textos
Nascido na cidade
 
Eu, com meus nove anos, certa vez li na minha certidão de nascimento: “nascido a 17 de julho... na cidade de Santana do Arari”. Foi um orgulho essa descoberta; passei a ser menino de cidade e não de vila, de comunidade. Era diferente então dos meninos do Tartarugueiro, do Crairu, de Santa Maria, de Porto Santo, porque eu nasci numa cidade, e eles pertenciam as suas comunidades. Comunidades de Santana do Arari.
Quando íamos brincar de bola no Tartarugueiro, na verdade sentia-me num sítio de Santana. Nada diferente. Mas eu imaginava uma distinção entre a minha cidade e seus interiores. Em alguma disputa mais acirrada, poderia me valer do brio de ser de cidade e eles não, e queria jogar essa na cara dos meninos das comunidades vizinhas, mas sempre amolecia e expulsava essa vontade da minha mente. Algumas pessoas diziam que eu parecia com o finado Rildo; ele é lembrado como um rapaz justo e generoso. Morreu jovem - acidente num jogo de futebol.
Só com dez anos e meio descobri que o homem do cartório em Belém, onde minha mãe me registrou, se enganou.
_Não, o Ediberto Filho não nasceu aqui, seu moço, ele nasceu foi em Santana do Arari mesmo.
E o “seu moço” (porque será que penso no homem do cartório como um ser burocrático, metido a doutorzinho de meia tigela?) assentou “cidade”. Tinha era que ter estudado como eu estudo, o velho. Ou que perguntasse, pesquisasse. Ainda ouço reclamações de pais de alguns amigos meus que o escrevente tinha errado a grafia dos nomes deles. Eles levavam o nome anotado para o carrancudo não cometer “lapsos”. Isso de nome é muito íntimo das famílias. Trata-se de nossa primeira documentação, o comprovante de nossa existência social. Quem não gosta do nome quer trocar. Ainda bem que o meu é o de meu pai. Não troco.
Pois sim. E o homem sério atrás da máquina datilográfica, em sua praticante ignorância, me deu um ano e seis meses de menino de urbe.
Depois, fui mesmo aceitando o fato. Santana é só uma vila, uma comunidade do município de Ponta de Pedras. Aliviava-me por não ter debochado dos meninos do Tartarugueiro.
Antes da chegada dos professores para implantação do Ensino Fundamental, parecia que mais pertencíamos à Cachoeira do Arari, pelas paradas dos barcos no trapiche aguardando a maré, pelo rio Arari... A cuidar, muita gente nossa daqui nasceu em Cachoeira. Porque tinha parente, porque o padre convidou, porque tinha uma nesga de terra acolá para casamento com filho ou filha do lugar. Minha mãe nasceu em Ponta de Pedras, na cidade mesmo. E meu pai era cachoeirense dali do Caracará. Ele veio numa festa do círio de Santa Ana e botou olhos naquela negra arredia. “Pôs olho em mim e não foi fácil!”, gabava-se ela. Acabou cedendo aos galanteios do jovem Ediberto Silva. Ah, isso quase dá fuzuê. Minha mãe tinha outro pretendente, dizia...
Já eu nasci aqui na comunidade. A dona Joana, parteira velha, foi chamada à boca da noite para ver se eu nascia. “Nasce, sim!”, garantia ela na sua exclamação de sempre sentir a vida uma maravilha única. E era. Mas na dúvida, papai arranjou embarcação para levar dona Marica para Cachoeira. Nem foi preciso; nasci ali mesmo em casa, pelas mãos da velha parteira.
_Não disse?! Homem!
Então, essa de me orgulhar de minha cidade, a maré levou, o vento soprou para os recantos da lembrança quase esquecida. Acho que foi um sentimento de frustração o que senti depois.
Mas, à medida que eu aprendo e cresço, minha imaginação quer me levar para muitos lugares, outras cidades; e eu vou, ainda que sem sair de Santana.
Jonas Furtado
Enviado por Jonas Furtado em 01/06/2020
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