Jonas Furtado
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Textos
Um ponta-pedrense sonhador
 
Sentou-se à porta da frente. Sentiu o frio do chão de barro batido e olhou a mangueira do vizinho, frondosa e carregada. Abriu o livro (muito indicado pelo professor para o trabalho escolar) e começou a ler. Parou...
Ficou pensativo. Imaginava os "campos queimados"; comparava-os com os "prados da Holanda", fechados de flores coloridas. Tinha consciência de que eram campos diferentes, e em sua imaginação, antagônicos. "Sim, antagônicos", bem como o professor explicou ao falar das personagens de um romance de que já não se lembrava mais. Porém, sonhava. O peito estufou-se de alegria, gozava de um pouco de satisfação.
Mas, não conhecia Holanda e nem, ao menos, Cachoeira. Sentia-se pequeno. Era pequeno.
Campo, ele conhece o de futebol, maior divertimento da comunidade. Quase toda tarde, reúnem-se os amigos e parentes para "aquele bate bola". As meninas na torcida gritam eufóricas: "Vai, Tirico. Não deixa esse perna-de-pau passar..." E arrumava-se a farra.
Conhece também o campo de pouso da comunidade no qual aterrissavam pequenos aviões (teco-tecos, como são conhecidos), o mais longo que até o momento ele conseguira conceber. Cerrado por falta de zelo e de uso ("mais de uso"); o campo de pouso nunca mais viveu a folia que era quando um teco-teco baixava para uma visita ou realização de algum trabalho. Nenhuma pessoa importante, nenhum político. E candidato agora, em época de eleições, vem de voadeira.
Ah! Sim, estava esquecendo-se da emoção que sentia ao ver um avião manobrar sobre as casas, alvoroçando o lugar. Um amigo (o Balado), doido na carreira, varava a cozinha de dona Marica, berrando "Beco, Beco! Avião, vamo vê", e saíam acompanhando o barulho que o "bicho" fazia. Beco deixava a monotonia dos dias em que nada acontecia de diferente. A algazarra estava armada.
A animação contagiava até os mais velhos.
Dona Marica, preocupada, atirava o ralo por cima da mandioca e, atrás dos garotos, esbravejava "Olhe, seus muleque, cuidado com a palheta!", até que parava e, de volta, falava para o povo das janelas vizinhas sobre a preocupação que tinha quando um "treco" daqueles descia.
Tio Zique (que Deus o tenha) tirava do bolso o abade e o tabaco picado. Fumava quatro vezes ao dia: de madrugada, de manhã, de tarde e de noite. Cada período do dia, ele respeitava e em homenagem tragava um charuto desses. Mas, abria exceção em tempo de agitação e as baforadas ganhavam outra significação menos formal: um não se sabe o quê de prazer e contentamento. Então saía a palavrear com toda gente.
Seu Mulato parava o dominó, levantando sempre as calças, erguia-se do banco de tora de "burajuba" e cogitava sobre o empenho do senhor Tomás: "Quem sabe agora o vereadô trouxe resposta do motô".
Rita, a irmã velha, surgia do fundo do quintal e plantava-se no caminho pelo qual os visitantes certamente passariam para oferecer-lhes coco verde ou ingá-de-metro, e assim poder arrumar o conto do querosene que faltava na lamparina.
Beco lembrava de tudo isso. Sentia uma espécie de desejo. Desejo de sair, conhecer, aprender e crescer. Desejo de conhecer campos com flores, campos queimados, e aeroportos dos quais pessoas vindas de Belém sempre falavam. E ele nunca foi a Belém.
A baía de Marajó, ele contemplava da praia das Flechas ou da praia de Santa Maria; a de Guajará, ele só ouvia falar. Nunca, em bote, saiu para pescar. Todavia, já "estava crescidinho e iria provar dessa aventura". Teria de acontecer assim.
Coisas de cidade, só vê realmente na sede do município; de outra forma, apenas nos livros por meio de gravuras e fotografias. Não se queixava de viver no "sítio", mas agora sentia a necessidade das vantagens oferecidas pela cidade.
A mãe vai receber a pensão mensal e Beco vai junto. Lamenta-se da estada que é breve, pois "a canoa do Jatoba não espera". Beco considera Ponta de Pedras. Gostaria é de mais tempo... Lá, ele pisa em praça calçada, de onde todo canto sai uma rua nova. Sim, "rua nova e de verdade!" O coreto é paixão primeira (de quando em quando até sonha com ele): um dia haveria de entrar lá e "olhar o mundo", declamaria uma poesia ("para isso também servem os coretos" - ouvira certa vez do professor), ou sentado no para-peito, contemplaria o movimento da vida simplesmente...
O Cristo, que fica na praça da "Barraca da Santa", atrás da "Casa Cabocla", um dia, ajoelhar-se-ia diante dele do jeito que aprendera fazer com a Santa Ana; leria os escritos das placas de pedras do obelisco da Praça Magalhães Barata (lera o nome ao passar com pressa por lá), onde se localiza o Grupo Escolar; iria à Telepará, tomaria o telefone e com responsabilidade falaria ao irmão que trabalha em outra cidade; assistiria a uma missa na Catedral e orando, pediria a Deus para que pudesse voltar no Círio; embarcaria no "Raimundo Malato" e finalmente desbravaria as baías.
Depois (talvez) conheceria Cachoeira, visitaria o museu e cavalgaria pelos campos de Dalcídio, tão miseráveis, mas cheios de vida; e, cada vez mais longe, viajaria para a Holanda e colheria lá dos prados um maço de "flores perfumadas"; pilotaria um grande navio e dele presenciaria um bonito pôr-do-sol.
Tudo ele se imaginava fazendo e em tudo derramava um pouco da essência que os sonhos possuem.
Lembrou-se do último livro que lera: fino e com figuras; divertiu-se com "Raquel" e suas "vontades", gostou muito do "Galo Rei" (que trocou o nome por Afonso); maravilhou-se com a "Guarda-chuva" e sua linguagem comprida, e com todo o mistério que "A bolsa amarela" continha.
Nisso, os minutos voaram... Quase deixou cair o livro de suas mãos. Voltou a folheá-lo. Encontrou a parte em que tinha parado na leitura. No entanto, já era noite. Dona Marica chama-o para jantar. Não chegou a terminar a primeira parte.
Jonas Furtado
Enviado por Jonas Furtado em 01/06/2020
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