Jonas Furtado
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Textos
A viagem
 
Álvaro Campos é o meu nome, doutor...? Gabriel, mas pode me chamar de Campos. As pessoas me chamam assim. Pensam que é pelo fato de eu morar no lado do campo; algumas até esquecem o “s”: “Campo”, “Bom dia, senhor Campo”, “Fale com seu Campo...”.
Como posso compreender o que houve?
Juro, doutor, que não sofro de nenhum complexo, nem mesmo usufruo de pensamentos mórbidos. Alguns pesadelos de outrora são, hoje, fantasmas bem enterrados.
Não me assombra mais a cabeça gigante de sombra pintando-se no meu quarto (apenas dormia de mau jeito naquela noite); o velho que carrega criança no saco não passa de brincadeira mítica pra criança obedecer; matinta-perera é pássaro que nunca me afrontou, nem em sonhos sequer; sereia é história de pescador, é lenda, assim como da uiara, do curupira, do boto que vira gente; definitivamente, doutor, dessas tolices estou curado. Cobra-grande existe. Meu padrinho viu uma!
Brinco com sombras projetadas na parede à noite; arremedo o assobio de qualquer ave e esse negócio de agouro é bobagem das mais puras; formiga dentro de casa, acabo com óleo diesel; presságios relacionam-se ao sexto sentido, acredito. Nunca mexi com os mortos, ah isso eu respeito, questão de dignidade: vou morrer também. Nisso sou cristão. Respeito qualquer religião ou seita. Sempre defendi a liberdade aliada à responsabilidade para que se possa ter uma boa convivência em sociedade.
Por isso tudo, doutor, não acreditaria no que aconteceu se não tivesse sido comigo.
Lembro-me de que... Ah, o senhor tem conhecimento... Pois sim. Minha esposa, Suzana é o nome dela, estava de viagem marcada a Belém para uma consulta médica. Sentia dores finas no peito e desconfiava de doença do coração. Difícil Suzana adoecer; sempre tão alegre e disposta. Descarto a possibilidade de ela ser hipocondríaca. Pois bem, na madrugada ela me acordou; tinha já arrumado tudo: sacolas e bolsa. Oraci, nosso filho, também estava pronto. Ele ia com ela. Não fosse o trabalho, eu iria junto. No entanto, eu deveria acompanhá-los até a lancha. Eram mais de duas horas. Suzana é acostumada a acordar cedo. Quando criança (contava ela), ajudava a mãe a lancear e nas despescas do matapi, “a que hora fosse”. Não temos despertador e se temos algum compromisso num horário desses, ela é o nosso relógio.
Levantei. A luz da lamparina incumbia-se de nos orientar (a elétrica é interrompida sempre à uma, toda noite). Fitei, sonolento, o pequeno Oraci. Ele sorria em minha direção; apenas um lado de seu rosto me era visível. Tateei com os pés a procura de minhas sandálias: nada. Quase joguei o bibelô de gesso no fim do corredor ao passar para a sala: lá estavam as sandálias. Só deu tempo de passar o pente pelos cabelos. Saímos.
“A rua está um breu!”, disse Suzana. Ainda pensei em algum personagem macabro e terrível do filme de terror a que assisti no “Domingo Maior”. Estaria atrás do muro do campo? Tomamos a Rodovia Mangabeira. Íamos andando apressados em direção à frente da cidade. Em Ponta de Pedras, o senhor sabe, cidade pequena do interior, tudo é perto: se vai a pé. Quando percebi, já havíamos chegado ao trapiche. Despedimo-nos. O “Malato” desatracou (não estava totalmente lotado) e desapareceu no cortinado da noite.
Tomei o caminho de volta. No relógio da igreja da praça da Matriz soaram três horas. Poucos passos ouviam-se no escuro. O vigia da feira anunciava com seu apito que estava no seu posto. Prossegui; em frente à Prefeitura notei que o cajueiro ao lado dela formava uma “monstra” sombra no ar, misteriosa – seria assombração? Besteira!
Desci pela calçada do cemitério (na vinda nem me dei conta de que passamos por ele); talvez devesse tomar a 30 de Abril, cambaria lá adiante e em frente da oficina (trabalho lá) entraria na Itaguari, virando logo à esquerda, na rua em que moro, no lado do campo: na rua do campo, como chamamos; assim como damos apelido às pessoas, as ruas também ganham apelidos e seus nomes ficam no esquecimento. Mas como eu dizia... Não tomei o trajeto planejado. O medo, doutor, já disse, não mais fazia parte de meu parco vocabulário. Continuei pelo cemitério (afinal estava indo para casa!). Antes que a calçada terminasse, cuidei de pegar a estrada (o mesmo caminho da vinda). Caminhava ao lado do cemitério; uma olhadela pelos cantos dos olhos revelou-me algumas cruzes e um gato no muro ou sombra de um. Aumentei o compasso dos meus passos no instante em que ouvi um assovio (assim, mavioso) ecoando em várias direções – alguma ave noturna, achei – não. Seguiu-se outro, e dessa vez tive a certeza de que eram assovios de gente. Repreendi meus pensamentos. Imagens do filme povoaram novamente minha imaginação. Continuei agora mais tenso. Virei à rua de casa e em poucos segundos varei o portão. Por um momento tive a impressão de estar sendo seguido. Abri a porta e entrei.
Acendi a lamparina; deixei-a no corredor, na entrada do quarto para que ele não ficasse totalmente escuro... Deitei.
Deu-me vontade de ir ao banheiro, mas estava realmente cansado. Fiquei relutando e esperando um brusco movimento de meu corpo que me pusesse de pé, quando ouvi o portão ranger. Seria o dono daqueles assovios? Não! Fiquei em alerta. Senti que a porta da frente se abriu e o esperado movimento brusco finalmente me joga da cama. Caminhei com cautela até o corredor: era Suzana de volta, dizendo que a embarcação sofrera pane: “Foi no motor, perto do farol”. Mas, não me lembrava de ter dormido e, no entanto, nem vi o tempo passar. Contemplei por um momento seu rosto, pálido pela luz escassa, talvez. Havia um não-sei-quê de sinistro acontecendo, notei. Ou eu deveria estar mesmo morrendo de sono.
Tinha sido uma semana cheia, com dias exaustivos: carrega tábuas, lixa móveis, prega trincos, cola peças; sem contar o barulho ensurdecedor das máquinas serrando, plainando, torneando, furando... Era pra tanto! Vida de marceneiro...
A bexiga anunciava aperto maior. Aproveitei e fui ao banheiro; difícil admitir que poderia estar com uma ponta de medo. Não! Isso é coisa pra criança. Meu finado avô, doutor, certa vez me disse que “o medo é a gente mesmo quem faz”. Sim, abri a porta dos fundos (o banheiro fica a poucos metros da cozinha, no quintal). A escuridão era intensa; orientei-me pelo costume de sempre ir ao banheiro à noite. Tivesse algumas estrelas, seria de bom grado um presente celeste naquele momento...
“Isso é coisa pra criança”, pensei novamente no medo que poderia estar sentindo. Enquanto mijava, o apito do vigia da feira me veio à lembrança como que querendo me tirar de um transe: foi assim que percebi que Oraci não tinha voltado com Suzana. Por quê?... Deixei o banheiro e, atarantado como formiga doida, tomei da lamparina e entrei no quarto. Antes que entrasse, eu já perguntava pelo nosso filho. Suzana levantou-se (estava sentada junto ao espelho da penteadeira) e sussurrou “meu coração...” com voz serena “ele viajou...”. A luz encheu seu rosto e fiquei perplexo!
Não pude compreender o que houve, doutor, mas ela estava sem um lado dos olhos, e os ossos da mandíbula sem a proteção da pele. Acho que desmaiei.
O que realmente aconteceu, doutor Gabriel? Sonhando profundamente? Mas, era tão real... E minha esposa, meu filho, onde estão? Por que não vêm me ver? E se era só um pesadelo, o que faço num hospital? Fiz uma viagem? Que viagem...?
_ Acorda, Álvaro. Está na hora. Já estamos prontos! ...
Jonas Furtado
Enviado por Jonas Furtado em 31/05/2020
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