“Ao lado dela se sentou um homem. Quando ela pegou o primeiro biscoito, o homem também pegou um.”
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Essas viagens de barco costumam ser longas; três horas já cansam nos dias de hoje. Fico a imaginar como eram na época das velas - as canoas demoravam um dia inteiro! para chegar a Belém, quando do vento escasso. Ainda bem que pertenço à Era do motor a diesel; polui, é claro... Polui a água onde os peixes moram, polui os ouvidos dos seres do mar, e polui, e polui, e polui. Mas chego mais rápido ao meu destino; se ganha tempo, e se ganha, e se ganha.
Lembrei que em minha mochila havia um saco de pupunha que comprara no trapiche. O rapazote "Pupunha, pupunha, pupunha da boa!" que encheu meus olhos um amontoado, punhado assim, que paguei pela aparência vistosa delas, das pupunhas. Tinha saído sem o café e as iguarias cairiam bem com o servido na embarcação. Levantei pelo café. Andei pelo barco a olhar a paisagem quase já decorada pelas tantas vezes que já vi; quase, porque ainda que saiba a rota, sempre há um ângulo novo, sempre há um novo rio, daí o dia ser diferente. Encontrei a bebida e voltei para o meu assento. Eu não estava com fome; carecia daquele ritual matutino - mastigar algo ajudaria passar o tempo. Levei a mão no saco de pupunha ao meu lado e fui alimentando o pensamento sobre as paisagens. Percebi então, num quase toque de mãos, que uma passageira ao lado também comia da mesma pupunha, do mesmo pacote. Não notara antes a vizinha do lado, até que ela mergulhou a mão para apanhar uma pupunha, da "minha pupunha!" Bom, tudo bem... Tinha o bastante para os dois - era só um desjejum mesmo.
Notei depois que, a cada pupunha que eu também tomava, ela agia com um cordial compartilhamento, o que me deixava entender levemente que ela me fazia um favor comendo do “meu” caboclo lanchinho matinal. Na verdade, era eu quem agia da mesma forma, afinal estava repartindo, numa espontaneidade afável, aquele alimento; aquilo me fazia bem. "Mas por que a viajante do lado não me pedira? Por que não se apresentou? Por que não disse que também desejava comer da pupunha? Será que me conhecia?” Eu? Não, não a conhecia.
O saco ainda meado, ali entre nós, aberto como a ouvir as nossas mentes... Tentava eu imaginar também o pensamento dela; não havia nada de investimento pessoal de ambas as partes - ela só deixava escapar uma doce afeição de simpatia, no que eu também respondia com reciprocidade comedida.
Os goles no café intercalavam as imagens que se formavam na minha imaginação e as frases que daí também brotavam - pupunheiras com poucos espinhos. O sabor seria completo se desse umas bocadas na farinha que só havia em casa, especial feita por mim lá no forno, perto do roçado. E o barco ia, e os minutos também, e as pupunhas desapareciam.
Verifiquei, com os olhos ladeados, as pupunhas. A pupunha! A última que ainda havia, resolvi que seria da minha companheira de refeição. Porém, ela não se servia; o jeito cordial dela me comunicava um favor que simpaticamente eu lhe retribuía. “Deixar a última para mim? Muito justo, já que o dono era eu”, pensei. Mas minha educação familiar me impedia de tocar no fruto que sobrara. Decidi então oferecer a ela. Claro, ela agradeceu, hesitou, mas tomou para si. A conversa atou-se, vaga e fática: viagem boa, baía limpa, céu limpo, manhã ensolarada; soprava um leve *marajó dançante pelo movimento do barco. "Limpa! Limpo! E a fumaça espirrada da descarga?! E o óleo laminando a água?! Limpo estava o meu pacote sem pupunha! No entanto, limpa estava a alma também pela boa ação que deixara acontecer...”
A embarcação finalmente atracava no porto da capital; despedimo-nos. Acredito que por polidez ela entregou-me seu cartão, ou oferecia seus serviços de contadora. Muito atencioso, guardei-o. Ela desapareceu entre os passageiros. Sua descrição aqui não se faz necessária, além da que vagamente já mencionei; acrescento apenas que era uma mulher jovem e educada, simpática. Minha vez de saltar; por algum motivo que me escapou, o embrulho de pupunha, agora vazio, tinha ficado ali no banco entre os dois lugares também vazios. Esse fato me retornou quando eu já ia longe.
Em casa, fiquei na companhia de Kid Abelha que cantava o final de semana feliz "mesmo duro ou com grana". Abri minha mochila para desfazê-la; lá estava o saco de pupunha, imexível! como um ministro de governo. "Meu Deus! Que vergonha!” Amorna meu rosto num enrubescimento crescente. "Então, eu comia da pupunha da vizinha de viagem!" Poxa, um sentimento de débito para com ela, e o pior é que talvez nós nunca mais nos encontremos. Havia jeito? São esses lances estranhos que nos acontecem que nos fazem sentir a vida com uma complexidade irônica, mas gostosamente aceitável, porque nem tudo nessa vida está explicado, nem tudo nessa vida precisa ser explicado. Degustei a pupunha como se fosse minha. "O que ela pensara de mim?" Deve ter me considerado um tresloucado, um maluco viajante sem rumo, sem lenço dentro da mochila e com poucos documentos na carteira: um enxerido! Isso!
Terminei com a mochila e remexi na carteira. Seu cartão! Tinha então a oportunidade de me desculpar. "Comi da sua pupunha, moça. Me perdoe! Jurava ser minha." Do outro lado, a mulher também pedia "desculpa, seu moço!" numa embaraçosa entonação suplicante, a dizer que pagaria as minhas pupunhas. Até hoje não entendi o que ocorrera. Nem ela. E o mundo todo desanuvia e se entretém apenas nesse mistério.